24º Domingo do Tempo Comum
Leituras:
Eclo
27,33 – 28,9
Salmo
102
Rm
14,7-9
Mt
18,21-35
Francisco Gondim Pereira (meu pai) |
Se você
errou, peça desculpas!
É difícil
pedir perdão?
Mas quem disse
que é fácil ser perdoado?
Se alguém
errou com você, perdoa-o!
É difícil
perdoar? Mas quem disse que é fácil se arrepender?
Cecília
Meireles
Diante de uma atitude imprudente, de uma imensa falta de justiça, vale a pena fazer conta que nada ocorreu? Há limites para o perdão?
Hoje são muitas
as vezes que nos deparamos com situações de morte e violência, sobretudo na
mídia, onde as pessoas mais atingidas respondem em forma de coro: “queremos que
se faça justiça!”
Mas o que entendemos
por justiça? No contexto aqui apresentado, será que o pedido de justiça não
está mais associado ao sentimento de ódio ou vingança?
Confrontando esta
triste realidade que impera no coração do ser humano, sobretudo por se
encontrar marcado por tantas situações de morte, de dor e de ausência de
escrúpulos, o evangelho deste domingo (Mt 18,21-35) nos apresenta uma indagação
bastante inquietante:
“quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?” (Mt
18,21).
É Pedro o autor da pergunta dirigida a
Jesus. Vejamos que, ao perguntar, ele mesmo sugere uma resposta: “sete vezes?” (Mt
18,21).
E diz Jesus: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,22).
Sabemos que o número 7 na bíblia tem um significado bastante especial, pois é
sinal de plenitude.
No costume judaico, quando uma pessoa havia
cometido alguma falta para com o seu semelhante, deveria reconhecer o seu erro
e pedir desculpas à pessoa ofendida. Esta, por sua vez, teria a obrigação de
aceitar o pedido de desculpas. Mas tal atitude só poderia ocorrer até, no
máximo, 3 vezes. Era inconcebível querer reparar o mesmo erro diversas vezes.
Contudo,
nem sempre foi assim. A bíblia nos narra outros episódios onde o rancor e a
amargura falavam mais forte. No Antigo Testamento, sentimentos de perda e morte
necessitavam ser reparados muitas vezes por meio de vingança. Exemplo disto se
encontra na figura de Lamec, filho de Caim. Este, ao falar sobre as mortes e
violências que tinha causado, diz: “Se
Caim for vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes” (Gn 4,24).
Embora nos impressione a semelhança dos
números com os que Mateus apresenta no diálogo de Jesus e Pedro (7 e 70 vezes
7), o contexto é totalmente diferente. Jesus fala em perdão, Lamec expressava
raiva e vingança.
No contexto do Antigo Testamento, o
sentimento de Lamec encontrará certo progresso com a famosa “lei do talião”: “olho
por olho e dente por dente...” (Ex 21,23-25; Lv 24,19-20; Dt 19,21). Esta lei
servia como uma espécie de “castigo-espelho”, ou seja, se uma pessoa causou a
morte do filho de uma outra, aquela pessoa que matou o filho (o homicida) seria
morta por esse crime.
Jesus almeja superar esse tipo de
comportamento. Provoca uma reflexão à luz do verdadeiro sentimento que impele
as relações humanas, ou seja, o amor. É o amor que supera toda a lei e promove
a realidade das bem-aventuranças: “felizes os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia” (Mt 5,7). Em outro episódio, ao ensinar os discípulos
a oração do Pai Nosso, Jesus diz: “perdoa-nos
os nossos pecados, pois nós também perdoamos a todo aquele que nos deve” (Lc
11,4).
Constatamos que
o ódio para com as pessoas é uma ruptura para com o projeto de Deus. A fim de
superar a prática da “lei
do talião”, o autor do livro do Eclesiástico expressa: “Quem quer vingar-se encontrará a vingança do Senhor, que
pedirá severas contas dos seus pecados. Perdoa ao próximo que te prejudicou:
assim, quando orares, teus pecados serão perdoados” (Eclo 28,1-2).
A partir do
questionamento de Pedro, Jesus quer inculcar nas pessoas que o perdão supera o
ódio, pois é mais forte do que a vingança. Eis a razão da parábola dos dois servos
devedores (Mt 18,23-35).
O primeiro servo
devia 10 mil talentos (o equivalente a 174 toneladas de ouro ou ainda a 200.000
anos de trabalho). Não havendo com o que pagar seria vendido com toda a sua família
e com os seus bens. Mas o servo soube intervir e o patrão “teve compaixão” (Mt
18,27).
A partir deste momento, facilmente
atribuímos ao patrão a figura do nosso Deus que é infinitamente misericordioso.
Diante de tão grande dívida, jamais aquele servo encontraria meios para pagá-la.
A atitude do patrão nos faz perceber que a misericórdia de Deus por nós é
imensa. Não há pecado que ele não perdoe, pois o pecado não é maior que o seu
amor.
Todavia, o mesmo servo que fez a
experiência de ser perdoado, não foi capaz de perdoar. De devedor assume a
postura de credor. Outro servo lhe devia a quantia de 100 denários (menos de 30
gramas de ouro). Enquanto o seu patrão havia lhe perdoado uma exorbitante
quantia, não foi capaz de perdoar o pobre homem que lhe devia algo bastante
irrisório. Pelo contrário! Como se não bastasse, além de não lhe perdoar, ainda
foi capaz de tirar-lhe a própria liberdade. Mandou que fosse parar numa prisão.
Realmente não houve perdão!
Lembremos as palavras da poetisa Cecília
Meireles, que estão no início de nossa reflexão: “É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?”. Pedro
perguntou a Jesus quantas vezes perdoar: “sete vezes?” (Mt 18,21). Perdão não supõe
quantidade, mas qualidade. Se não for pleno, não é perdão! Daí o sentido do
número 7 neste evangelho.
Quando nos deixamos transformar por
Deus, quando há verdadeira mudança interior, quando nos desinstalamos, saímos
do nosso egoísmo, da nossa mesquinhez... então inicia em nós um processo de
conversão e, por conseguinte, uma abertura para a realidade do perdão. Mas tem que ser do nosso íntimo mesmo! Não adianta vivermos
de aparências, buscando a justiça que mais se adéqua a sentimentos de vingança
(lembremos o que foi dito no início desta nossa reflexão). Nos reportemos às
palavras de Jesus, em outro episódio do evangelho segundo Mateus: “Se vossa
justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino
dos Céus” (Mt 5,20). Que nossa justiça gere em nós o desejo de vivermos novas
relações. Com respeito, sinceridade, humildade e transparência.
Não é algo fácil! Somos confrontados a
todo instante. Muitas vezes queremos uniformizar as nossas relações. Acreditamos
que temos o direito de que todos pensem como nós. Queremos que os outros apresentem
as nossas mesmas opiniões sobre determinadas atitudes e comportamentos. É necessário
um fecundo discernimento de nossa parte. Perdoar requer renúncia. A tolerância
é um dos grandes passos para se alcançar o perdão. É o mesmo propósito citado
por São Paulo: “Ninguém dentre nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se
estamos vivos, é para o Senhor que vivemos, e se morremos, é para o Senhor que morremos.
Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor. Cristo morreu e ressuscitou para
ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,7-9).
Compreendamos que o mais
importante é acolher as pessoas com suas diferenças e limitações, buscando viver
em nós aquilo que nos une, respeitando as diversidades. É este amor que Jesus
nos ajudou a enxergar. No amor há perdão e respeito! “Se estamos vivos (...) e se morremos (...) é para o Senhor...”
(Rm 14,8). É na totalidade de nossas vidas que o perdão se faz
necessário.
Perdoar é algo sério. Nunca
foi e nunca será fácil. Mas, a partir da nossa tomada de consciência, da nossa
oração verdadeira, do nosso discernimento... certamente será uma atitude cristã
que tomará conta de nós. Que o Senhor “bondoso, compassivo e carinhoso” (Sl
102) nos ilumine e nos apresente as atitudes mais acertadas para bem viver as
nossas relações. Amém!
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