quarta-feira, 7 de setembro de 2011

É na totalidade de nossas vidas que o perdão se faz necessário.


24º Domingo do Tempo Comum
Leituras:

Eclo 27,33 – 28,9
Salmo 102
Rm 14,7-9
Mt 18,21-35

Francisco Gondim Pereira (meu pai)
Se você errou, peça desculpas!
É difícil pedir perdão?
Mas quem disse que é fácil ser perdoado?
Se alguém errou com você, perdoa-o!
É difícil perdoar? Mas quem disse que é fácil se arrepender?
Cecília Meireles

Diante de uma atitude imprudente, de uma imensa falta de justiça, vale a pena fazer conta que nada ocorreu? Há limites para o perdão?
Hoje são muitas as vezes que nos deparamos com situações de morte e violência, sobretudo na mídia, onde as pessoas mais atingidas respondem em forma de coro: “queremos que se faça justiça!”
Mas o que entendemos por justiça? No contexto aqui apresentado, será que o pedido de justiça não está mais associado ao sentimento de ódio ou vingança?
Confrontando esta triste realidade que impera no coração do ser humano, sobretudo por se encontrar marcado por tantas situações de morte, de dor e de ausência de escrúpulos, o evangelho deste domingo (Mt 18,21-35) nos apresenta uma indagação bastante inquietante: “quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?” (Mt 18,21).
É Pedro o autor da pergunta dirigida a Jesus. Vejamos que, ao perguntar, ele mesmo sugere uma resposta: “sete vezes?” (Mt 18,21). E diz Jesus: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,22). Sabemos que o número 7 na bíblia tem um significado bastante especial, pois é sinal de plenitude.
No costume judaico, quando uma pessoa havia cometido alguma falta para com o seu semelhante, deveria reconhecer o seu erro e pedir desculpas à pessoa ofendida. Esta, por sua vez, teria a obrigação de aceitar o pedido de desculpas. Mas tal atitude só poderia ocorrer até, no máximo, 3 vezes. Era inconcebível querer reparar o mesmo erro diversas vezes.
Contudo, nem sempre foi assim. A bíblia nos narra outros episódios onde o rancor e a amargura falavam mais forte. No Antigo Testamento, sentimentos de perda e morte necessitavam ser reparados muitas vezes por meio de vingança. Exemplo disto se encontra na figura de Lamec, filho de Caim. Este, ao falar sobre as mortes e violências que tinha causado, diz: “Se Caim for vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes” (Gn 4,24).
        Embora nos impressione a semelhança dos números com os que Mateus apresenta no diálogo de Jesus e Pedro (7 e 70 vezes 7), o contexto é totalmente diferente. Jesus fala em perdão, Lamec expressava raiva e vingança.
        No contexto do Antigo Testamento, o sentimento de Lamec encontrará certo progresso com a famosa “lei do talião”: “olho por olho e dente por dente...” (Ex 21,23-25; Lv 24,19-20; Dt 19,21). Esta lei servia como uma espécie de “castigo-espelho”, ou seja, se uma pessoa causou a morte do filho de uma outra, aquela pessoa que matou o filho (o homicida) seria morta por esse crime.
        Jesus almeja superar esse tipo de comportamento. Provoca uma reflexão à luz do verdadeiro sentimento que impele as relações humanas, ou seja, o amor. É o amor que supera toda a lei e promove a realidade das bem-aventuranças: “felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7). Em outro episódio, ao ensinar os discípulos a oração do Pai Nosso, Jesus diz: “perdoa-nos os nossos pecados, pois nós também perdoamos a todo aquele que nos deve” (Lc 11,4).
        Constatamos que o ódio para com as pessoas é uma ruptura para com o projeto de Deus. A fim de superar a prática da “lei do talião”, o autor do livro do Eclesiástico expressa: “Quem quer vingar-se encontrará a vingança do Senhor, que pedirá severas contas dos seus pecados. Perdoa ao próximo que te prejudicou: assim, quando orares, teus pecados serão perdoados” (Eclo 28,1-2).
        A partir do questionamento de Pedro, Jesus quer inculcar nas pessoas que o perdão supera o ódio, pois é mais forte do que a vingança. Eis a razão da parábola dos dois servos devedores (Mt 18,23-35).
        O primeiro servo devia 10 mil talentos (o equivalente a 174 toneladas de ouro ou ainda a 200.000 anos de trabalho). Não havendo com o que pagar seria vendido com toda a sua família e com os seus bens. Mas o servo soube intervir e o patrão “teve compaixão” (Mt 18,27).
A partir deste momento, facilmente atribuímos ao patrão a figura do nosso Deus que é infinitamente misericordioso. Diante de tão grande dívida, jamais aquele servo encontraria meios para pagá-la. A atitude do patrão nos faz perceber que a misericórdia de Deus por nós é imensa. Não há pecado que ele não perdoe, pois o pecado não é maior que o seu amor.
        Todavia, o mesmo servo que fez a experiência de ser perdoado, não foi capaz de perdoar. De devedor assume a postura de credor. Outro servo lhe devia a quantia de 100 denários (menos de 30 gramas de ouro). Enquanto o seu patrão havia lhe perdoado uma exorbitante quantia, não foi capaz de perdoar o pobre homem que lhe devia algo bastante irrisório. Pelo contrário! Como se não bastasse, além de não lhe perdoar, ainda foi capaz de tirar-lhe a própria liberdade. Mandou que fosse parar numa prisão. Realmente não houve perdão!
Lembremos as palavras da poetisa Cecília Meireles, que estão no início de nossa reflexão: “É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?”. Pedro perguntou a Jesus quantas vezes perdoar: “sete vezes?” (Mt 18,21). Perdão não supõe quantidade, mas qualidade. Se não for pleno, não é perdão! Daí o sentido do número 7 neste evangelho.
        Quando nos deixamos transformar por Deus, quando há verdadeira mudança interior, quando nos desinstalamos, saímos do nosso egoísmo, da nossa mesquinhez... então inicia em nós um processo de conversão e, por conseguinte, uma abertura para a realidade do perdão. Mas tem que ser do nosso íntimo mesmo! Não adianta vivermos de aparências, buscando a justiça que mais se adéqua a sentimentos de vingança (lembremos o que foi dito no início desta nossa reflexão). Nos reportemos às palavras de Jesus, em outro episódio do evangelho segundo Mateus: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20). Que nossa justiça gere em nós o desejo de vivermos novas relações. Com respeito, sinceridade, humildade e transparência.
Não é algo fácil! Somos confrontados a todo instante. Muitas vezes queremos uniformizar as nossas relações. Acreditamos que temos o direito de que todos pensem como nós. Queremos que os outros apresentem as nossas mesmas opiniões sobre determinadas atitudes e comportamentos. É necessário um fecundo discernimento de nossa parte. Perdoar requer renúncia. A tolerância é um dos grandes passos para se alcançar o perdão. É o mesmo propósito citado por São Paulo: “Ninguém dentre nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos, e se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor. Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,7-9).
        Compreendamos que o mais importante é acolher as pessoas com suas diferenças e limitações, buscando viver em nós aquilo que nos une, respeitando as diversidades. É este amor que Jesus nos ajudou a enxergar. No amor há perdão e respeito! Se estamos vivos (...) e se morremos (...) é para o Senhor...” (Rm 14,8). É na totalidade de nossas vidas que o perdão se faz necessário.
        Perdoar é algo sério. Nunca foi e nunca será fácil. Mas, a partir da nossa tomada de consciência, da nossa oração verdadeira, do nosso discernimento... certamente será uma atitude cristã que tomará conta de nós. Que o Senhor “bondoso, compassivo e carinhoso” (Sl 102) nos ilumine e nos apresente as atitudes mais acertadas para bem viver as nossas relações. Amém!

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